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Decidi sair em viagem para a América Latina em um domingo chuvoso de dezembro. Era véspera das comemorações natalinas e eu estava passeando no Porto com minha namorada, Narcisa, quando avistamos uma embarcação brasileira adentrando ao canal do rio Douro, que corta a cidade e segue em direção à Espanha. Era um catamarã com bandeira brasileira e nele estava uma família de brasileiros que navegava pelo mundo. Em seu casco, o nome: Delphis Catamarã. A família – um casal e dois “raparigos” – saiu de bicicleta pela região portuária e logo decidiu parar a bicicleta, pois as ladeiras do Porto são desaconselháveis para pedalar. Então me ofereci para ajudar. Conversamos um pouco e o casal nos convidou para conhecer a embarcação. Era ampla, apesar de pequena para uma volta ao mundo, mas tinha tudo o que uma família necessita para viajar. Entretanto, espaçoso o suficiente para Cristina Salles – a brasileira – contar tudo sobre o Brasil e me deixar decidido a conhecer aquelas terras que séculos antes pertenceu a Portugal.

Bom, saímos do Porto direto a Vairão. Em minha bagagem cerebral pensamentos e sonhos que não deixavam meu cérebro descansar. Só queria respirar aquele ar das montanhas brasileiras, ou experimentar o sabor da tal de jaca – fruta descrita por Cristina como “uma geleia doce e arenosa ao mesmo tempo”. Então comecei a traçar meus planos para realizar esse sonho inicial, que com o tempo foi crescendo, crescendo, até que ficou do tamanho da América Latina e, quem sabe, um pouco dos Estados Unidos. Era tanta coisa para pensar e preparar que nem sabia como começar. Mas comecei.

No dia seguinte convidei Narcisa para tomar um café na confeitaria da praça central de Vairão – uma praça de onde saem todas as ruas da freguesia. Aliás, Vair:ao é uma localidade pequenina, com ruas estreitas e casarões com pinturas descascadas pelo efeito do tempo. Também há casas bonitas, reformadas no tempo em que a prosperidade econômica tomava conta de Portugal e os investimentos à base de loucas hipotecas ainda movimentava a construção civil no país. As loucuras financeiras eram mais modestas se comparadas com a vizinha – mas não irmã – Espanha. Lá a loucura especulativa foi maior. Bom, Quando decidi viajar Vairão ainda era pequenina, com apenas 1250 habitantes. Porém, em 2013, juntou-se à freguesia de Fornelo, passando ao super povoado de 2.640 habitantes. Porém, manteve suas características de vilarejo português, com apoio à produção rural e às conversas ao pé da janela.

Numa dessas conversas me deparei com uma senhora brasileira filha de portugueses daquela localidade. Com cabelos loiros – segundo ela, provenientes de chá de camomila -, a jovem senhora “estapafúrdia”, como mesmo se autodefine, era brasileira e filha de uma portuguesa daquela freguesia. “Minha mãe sempre dizia que era de Trás os Montes (na região conhecida como Alto Douro), mas descobrimos que ela era nascida e batizada aqui em Vairão. Então decidi voltar às minhas origens”, disse Ruth de Paula Ferreira logo no começo da conversa.  Segundo ela, sua mãe fora viver no Brasil quando pequena e nunca mais voltou. Lá, casou-se com um brasileiro do Vale do Paraíba – interior de São Paulo – e teve vários filhos, ela como uma das mais jovens.

Ruth me contava como era a vida no Brasil, especialmente no Estado de São Paulo. “Esse é o melhor Estado do Brasil. As pessoas são mais bonitas, elegantes e também têm muito mais bom gosto”, dizia aquela velha brasileira bairrista. Entretanto, apesar de brasileira filha de brasileiro Ruth era uma senhora tipicamente portuguesa. Seu sotaque era brasileiro, mas usava palavras comuns em Portugal. Também tinha costumes relacionados à vestimenta e à decoração encontrados em portuguesas daquela idade. Sua fisionomia era composta por pedaços de portuguesas. O nariz, as verrugas, a maquiagem e, à luz, um bigode que segundo ela servira de brincadeira no Brasil. “Meu neto sempre dizia que português usa bigode para se parecer com a mãe, aquele malcriado”, dizia sorrindo.

Depois de horas de conversa regadas a café preparado “como se faz no Brasil” e bolinho de milho e erva doce (que ela preparava com mãos cansadas pelo tempo, mas acostumadas com aquela receita), fui embora. Tinha que estudar minha viagem ao Brasil e planejar as economias para tal aventura. Seria um Pedro Alvares Cabral do Século XXI, com uma mochila no lugar de caravelas e mapas ao invés de ventos perdidos que, segundo a história, o tiraram da rota para as Índias. Mas o maior desafio naquele momento era convencer Narcisa, meu amor, a esperar por meu retorno.

Narcisa, uma bela jovem do norte de Portugal, nascera em Aveiro, município à beira mar e que tem como tradição os barcos moliceiros que navegavam pela Ría de Aveiro carregados de moliço e sal ao porto. Hoje, a cidade carrega o nome de “Veneza portuguesa”, enquanto Narcisa vive em Vairão com seus pais e mais cinco irmãos. Sua atividade principal é a fabricação de geleias e doces de cereja, cultivados em um amplo pomar ao fundo de sua casa, tipicamente portuguesa. Narcisa é carinhosa, calada e sensível, o que sempre me preocupou e me provocava temor ao contar meu plano desbravador.

Bom, voltei aos preparativos. Criei uma conta numa rede social, a contragosto, e comecei a buscar conhecidos no Brasil. Queria informações sobre hospedagens, lugares a conhecer e até mesmo possibilidades de emprego – mesmo informal – no Brasil. Queria viajar sem risco de ter de voltar correndo por falta de dinheiro. Ainda assim, resolvi deixar uma quantia guardada no banco para comprar uma passagem com urgência se fosse necessário. Afinal, sou português, e os pés no chão é o que mais nos diferencia dos vizinhos da Castilha. Porém, a única coisa que conseguia sobre possibilidades de emprego era em padaria. Não conseguia entender naquele momento porque os portugueses são relacionados às padarias que, segundo informações, eram verdadeiras confeitarias.

Então decidi que deveria começar por São Paulo e São José dos Campos, terra natal da D. Ruth, como se apresentava. De lá, decidi que deveria conhecer o Vale Histórico, bastante parecido com Portugal, como pude ver no documentário produzido por seu neto – Tradições Paulistas, cadê? – e de lá seguir a Ouro Preto, que em outros tempos fornecia as riquezas naturais que seguiam pela Trilha do Ouro até Paraty, saindo de lá com destino aos portos de Portugal. Em seguida, deveria conhecer a capital, Brasília, construída em forma de avião e que sediava os principais departamentos do Governo Federal – e seus políticos conhecidos mundialmente como campeões da corrupção, ainda que os políticos portugueses sejam páreo duro para eles. Qual destino seguir? Ainda não sabia, mas iria estudar. Talvez alguma das belas praias do Nordeste ou as belezas do sul do Brasil, região próxima a outros países do continente e que passaram a me interessar bastante.

Aliás, depois desse passeio pelo mapa brasileiro pensei: “Ora, vou viajar ao Brasil e nem aproveitarei para conhecer os países vizinhos, como o fazem brasileiros que viajam a Portugal?”. Então decidi estudar um pouco da história e da cultura dos países limítrofes, vizinhos do Brasil – praticamente todos da América do Sul. Daí surge a ideia de passar um tempo trabalhando no país e juntar dinheiro para viagens aventureiras de autocarro, comboio e até mesmo avião, quando necessário. Comecei minha aventura em busca de uma rota que fosse ao mesmo tempo interessante e possível de ser cumprida. Enquanto isso, pensava em como diria à minha querida Narcisa que seu Candinho iria se ausentar por um tempo – quem sabe entre uma primavera e outra – e que iria levar na lembrança não somente as geleias de cereja, mas também a doçura do seu olhar, destacado por seus olhos azuis tranquilos e alegres. Seguiria no meu sonho na tentativa de superar os desafios que viriam a seguir.

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O Rio Douro recebe viajantes do mar e do interior. Aqui encontrei Delphis.

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Bicicleta e ladeiras do Porto não combinam.

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Os moliceiros na Ría de Aveiro, hoje servindo ao turismo da “Veneza portuguesa”.

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Apenas um oceano entre eu e meus sonhos. E uma âncora me segurava em terra: o olhar de Narcisa.

(continua em breve)

Veja post anterior:
Um mochileiro português na América Latina